O Caminho das Bem-aventuranças

Autor: João Alves (NEPE FEPB)

O Sermão do Monte, presente no Evangelho de Mateus (cap. 5-7), é considerado por muitos estudiosos e religiosos como sendo o “coração” da Boa Nova do Cristo.

Analisando o conteúdo desse trecho bíblico, deparamo-nos, logo no início, com um conjunto de ditos intitulados “as bem-aventuranças”. Jesus, o Mestre Galileu, profere uma sequência de beatitudes que estão dispostas textualmente de forma didática, numa proposta de caminho ascensional da alma em seu processo de iluminação interior.

É importante, antes de adentrar propriamente na reflexão sobre o caminho das bem-aventuranças, compreender de que modo a felicidade ou beatitude era entendida no contexto da narrativa evangélica. A palavra grega “makárioi” (felizes, bem-aventurados) tem relação com a palavra hebraica “ashrei”, a qual indica um estado de movimento, uma marcha. Portanto, a felicidade aqui expressa não reflete a percepção de “estado de contentamento inerte ou impassível”. A felicidade cantada por Jesus, em sua poesia espiritual, é um dinâmico esforço contínuo da alma em busca do Reino dos Céus.

A perspectiva de caminho ascensional pode ser entrevista quando cada virtude ou realização espiritual contida nas bem-aventuranças é avaliada organicamente. Vejamos. A primeira beatitude diz respeito aos “pobres em espírito”, entendendo-se aqui os humildes e simples de coração – como escreve Allan Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo (cap. 7) – e não os carentes de inteligência. Se perguntarmos a nós mesmos, em um exercício reflexivo, qual seria a virtude mais fundamental para a reforma íntima, logo nos vem à mente a humildade, considerando que o orgulho (seu sentimento oposto) é a imperfeição moral “mãe”, junto com o egoísmo, de todas as outras. Nesse sentido, Jesus inicia seu ensinamento justamente pelo que é mais fundamental, e, como excelso pedagogo, conduz seus aprendizes através dos degraus da escada evolutiva da purificação do sentimento.

Logo após os humildes, Jesus põe os aflitos ou “enlutados”, como expressa melhor o termo grego usado, e diz que os mesmos serão consolados. Ora, será possível que um indivíduo orgulhoso, em aflição, tenha resignação e saiba sofrer sem murmurar? Conforme o capítulo 5 de O Evangelho Segundo o Espiritismo, só obtém a consolação aquele que sabe lidar com o sofrimento sem revoltar-se, compreendendo a vontade soberana de Deus e a função educativa da dor. Dessa forma, somente o indivíduo humilde saberá aceitar a dor como mestra, e, portanto, alcançará consolação. Jesus alude ainda aos mansos ou pacíficos, aos quais está reservada a herança da terra, pois na era da regeneração não haverá espaço para os violentos nem usurpadores.

Aos que têm fome e sede de justiça, Jesus assegura que serão saciados. Mas que justiça seria essa? Se tomarmos em conta a sequência progressiva da alma nesse caminho de redenção, alguém que já é humilde e manso não buscará, de modo algum, ser “justiceiro”, ou seja, fazer a justiça como lhe parecer melhor. Antes de tudo, esse indivíduo buscará ajustar sua própria conduta à Lei Divina; ele tem sede e fome de ser fiel à Justiça Divina, de alinhar sua vontade pessoal à Vontade de Deus, e não anseia mais seguir os atalhos fáceis da “justiça” do mundo. O Mestre cita ainda os misericordiosos, que, conforme a lei de causa e efeito, receberão misericórdia, muitas vezes não dos homens a quem beneficiaram, mas de certo dos Céus que não deixam ninguém sem receber o que lhe é de direito.

Tendo chegado ao grau da misericórdia, virtude que é relacionada ao próprio Deus por Jesus no Evangelho de Lucas (6:36), expressando com isso a perfeição relativa que cabe ao ser humano alcançar, o Mestre então apresenta o grau da pureza espiritual, a pureza de coração (pensamento, sentimento, desejo) que proporciona a visão ou compreensão de Deus. Na questão 10 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec indaga se o homem pode compreender a natureza íntima de Deus. Como resposta, os Espíritos afirmam que, para isso, “falta-lhes o sentido”. Que sentido seria esse? Pelo conteúdo presente na resposta da questão seguinte, a décima primeira, podemos depreender que esse “sentido” é o “sentido moral purificado”, limpo de toda imperfeição material. É precisamente a essa pureza que Jesus se refere no Sermão do Monte. Percebemos aqui, como em tantas outras ocasiões, a concordância das três grandes Revelações Divinas dadas ao homem terreno para lhe servir de orientação segura ao bem viver.

É interessante notar que o caminho ascensional que estamos a analisar parece ter dois momentos: um mais voltado para a relação da criatura com ela mesma e sua reforma íntima (do “pobre em espírito” ao “puro de coração”), e outro mais voltado para o serviço a Deus através do sacrifício pela humanidade, após a conquista dos primeiros degraus e a chegada à pureza de coração. O puro de coração compreende Deus, e, assim sendo, está apto a fazer a Sua vontade da melhor forma possível.

No versículo 9 do capítulo 5 do Evangelho de Mateus, o Mestre Jesus fala dos “filhos de Deus”: os pacificadores. Ao lermos essa definição, pensamos: mas eu, mesmo não sendo pacificador, não sou então filho de Deus? É oportuno nos determos nessa afirmação de Jesus, pois ela encerra um profundo ensinamento. Todos os seres criados por Deus são seus “filhos-criaturas”, tomando-se Deus como Pai. Contudo, é fato que se pensarmos na figura do “filho ideal”, ou seja, aquele que segue a vontade do Pai e se lhe assemelha no ser, quantos de nós poderíamos, verdadeiramente, merecer esse título? É nesse sentido, pensamos, que Jesus ensinava. Se Deus é entendido como “a Paz Perfeita”, “o Sereno Ser Supremo”, na pobreza de nossa limitação conceitual, segue-se que um indivíduo que seja pacificador (e não apenas pacífico) merece ser chamado “filho de Deus”. Dissemos “não apenas pacífico” porque há uma sutil diferença entre essas duas condições. O pacífico ou manso já superou os ímpetos de violência. O pacificador, literalmente “o que produz a paz”, vai além disso: ele torna-se agente direto da vontade Divina no trabalho de harmonizar as relações no mundo. Como diria Francisco de Assis, ele é “um instrumento da paz do Senhor”.

As últimas duas bem-aventuranças tem a ver com a perseguição que os “filhos de Deus” irão sofrer por causa de suas posturas e ações em nome do Bem coletivo, da Justiça e do próprio Cristo, o Amor, em preferência ao interesse pessoal. É o ápice da escalada. A jornada das beatitudes tem o seu clímax no testemunho sacrificial que o indivíduo consciente e harmonizado à Lei Divina e aderente ao discipulado junto ao Cristo realiza, por amor, em todas as situações. Já tendo vencido seu orgulho, sua violência, suas impurezas, enfim, já tendo superado as imperfeições morais, esse indivíduo consagra-se a Deus e ao Cristo, e, não pensando mais em si, entrega-se dócil ao serviço de regeneração da humanidade.